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Escritora Paulina Chiziane vence Prémio Camões 2021

Texto: José dos Remédios Foto: O País

Osol já vai deitar-se. Aparentemente, foi um dia como tantos outros. No Bairro Albasine, Cidade de Maputo, a agitação dos carros e dos transeuntes é rotineira. Naquele quintal enorme, à beira da estrada, encontra-se uma mulher de 66 anos de idade. É uma mulher invulgar. Aliás, todas as mulheres. Ela tem nome. Chama-se Paulina Chiziane e, para o jantar, cozinha mboa, ou seja, folhas de abóbora. A mulher, que também escreve histórias desde os anos 80 do século passado, garante: “Eu faço uma mboa como ninguém”. Ninguém dúvida da mulher com um olhar muito assertivo. De demover qualquer homem com fracas convicções.

São mais ou menos 17h30. No fogão, a panela cumpre o dever de ferver. De outro modo, não haveria jantar. De repente, o telemóvel iphone da escritora toca. “– Alô, boa tarde. Aqui é fulano. Ligo para informar a senhora que é a nova Prémio Camões”. Paulina quase entra em êxtase. Não acredita, duvida, questiona, olha ao redor eventualmente para localizar uma outra Paulina. Nada. Naquele quintal enorme do Bairro Albasine, há apenas uma Paulina, e é ela. “– O senhor tem a certeza de que sou eu?”. Esta foi mais ou menos a pergunta. E o senhor, com sotaque dia não foi mais o menos. Na verdade, nem o dia, nem tudo o resto.

No fogão, enquanto se alegra pela notícia, a mboa deixa de ser o prenúncio de uma boa refeição.

Queima, isso é que é. A escritora e caril já não era caril e ninguém naquela casa quis pensar em comer. “– Eu perdi o apetite”, disse Rita, sem culpar a avó que, entretanto, se mantinha a conversar com os jornalistas, já farta de atender à chamada do celular que tocava a cada cinco minutos.

A conversa acontece numa noite de luar. Ainda bem, pois, na véspera ou há dias, um relâmpago afectou o fornecimento de luz em algumas áreas da casa, incluindo o quintal. Mesmo assim, a escritora quase que desvaloriza a ausência Portugal, e não de Cahora Bassa, veio uma luz mais incandescente. O Camões, meus senhores. A Paulina não escondeu que gostou e que está muito feliz. Mas esclareceu: “Quando a gente trabalha, nunca deve pensar em prémios. Eu nunca dei importância nenhuma a isso. Eu faço o que eu quero, o que penso no momento, aquilo que me emociona, que me decepciona ou que me alegra. Produzo algo, coloco no mercado, e nem sempre a reacção é boa. Mas, penso que, um dia, vão perceber-me. Eu faço literatura, porque quero, gosto, me apetece e sinto que tenho capacidade para fazer”.

A essa altura, passam das 20 horas. Cabe à neta Rita atender as chamadas de tanta gente que quer ouvir Paulina Chiziane. Talvez, por ver a neta sentada no chão, visivelmente satisfeita pela avó, a escritora lembra-se dos tempos de infância. “Quando tinha 13 ou 14 anos, o que eu mais gostava de Eu cresci conhecendo a história das outras pessoas. Por isso, este não para aquilo que está por fazer. Mas, a minha história e o meu percurso podem inspirar uma outra pessoa, no sentido de que um dia alguém vai dizer que existiu uma senhora chamada Paulina, que - dades, mas conseguiu chegar aonde chegou. Essa é a única história que, para mim, é importante”.

A RESPONSABILIDADE E UM ABRAÇO AOS ADVERSÁRIOS LITERÁRIOS

No dia em que recebeu a notícia do Prémio Camões, Paulina Chiziane partilhou que tem vários projectos literários, como literatura em forma musical. “Pode ser que este prémio dê um impulso a isso. Não tenho ideias claras. Isto me apanhou de surpresa. Mas, da mesma forma que cresci com histórias de outras pessoas, pode ser que os moçambicanos cresçam com a minha. Essa é a minha maior esperança”, reforçou esta ideia muito bem enraizada na sua mente.

Paulina, entretanto, leva um copo à boca. O líquido? Não é, seguramente, o mais importante. A mulher bebé devagar, com que a abrir a garganta. Depois, mesmo a responder a uma pergunta do jornalista que naquela casa goza de alguns privilégios, remata: “Agradeço profundamente aos meus adversários. Não diria inimigos, mas adversários. Aqueles que diziam: ‘Paulina, tu não és nada’. E eu dizia assim: ‘sim, não sou, mas um dia serei’. Eu tinha um obstáculo que me sufocava e eu lutei para saltar a barreira de modo a atingir outro patamar. Se eu não tivesse tido obstáculos, talvez não tivesse caminhado. Às vezes, ser bem tratado é bom demais. Quando a pessoa está na sua zona de conforto, não descobre as suas qualidades, o seu interior. Eu fui testada até à última instância. Foi um processo terrível chegar até aqui. O meu trabalho nunca foi fácil, foi sempre uma luta”.

E quanto à pergunta: este prémio dá-lhe mais responsabilidade, respondeu sem hesitar: “Responsabilidade? Já tive. Agora, quero estar descansada, quero fazer o que me apetece”. E uma dessas coisas que a apetece é ir contar histórias às crianças na creche. Pena que esta coisa da COVID-19, em casa.

Na noite em que foi anunciada vencedora do Camões, tornando-se a primeira mulher africana a conquistar o prémio, portanto, Paulina Chiziane livrou-se de qualquer responsabilidade, optando pelo prazer de existir. “Este reconhecimento é uma forma de dizerem ‘Paulina, já trabalhaste. Também precisas de repousar”. Quando vai repousar, a Prémio Camões 2021 não disse e essa pergunta não foi colocada.

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